Autor: Gustavo Corção
Obra: Lições de Abismo
A Via-láctea, indecisa, esfarrapada, parece uma enorme fita
a envolver todo o universo, presente de Natal que os anjos esqueceram de
desatar.
Não. A Via-láctea não envolve todo o universo. É apenas uma
das fagulhas dessa imensa explosão que chamamos de universo. Tem a forma de um
grão de lentilha; e inclui no seu domínio cerca de cem bilhões de estrelas. As
outras galáxias, a distâncias que já não se podem medir com a minúscula base de
nossa órbita planetária, mas que se medem pela análise da luz, deixam-me um
sentimento de estranheza, como nos dão as casas dos outros, as outras cidades,
os países em que se falam outros idiomas. Aquela é nossa Via-láctea.
Tu que gostas de levantar muros e de traçar limites, ó
coração do homem, vê se consegues achar ainda um diluído aconchego nesta
galáxia que é a tua, e que encerra cem bilhões de sóis. Vê se consegues pensar
na bandeira deste rincão do universo.
Já foi feito o cálculo, de onde se conclui que cada um de
nós, habitantes da Terra, pode considerar-se proprietário de trinta mil
estrelas. Como porém só existem sete mil que são visíveis, resulta que é
invisível o lote comum dos mortais. Quem será o dono de Aldebarã? Quem será o donatário de Sírius? Eu não sou.
Devo contentar-me com o mais modesto quinhão de trinta mil estrelas invisíveis
que amanhã ou depois ninguém encontrará no meu inventário.
Ontem, vendo passar um bonde, fiz a mim mesmo a pergunta
perplexa do poeta. Pra que tantas pernas? Hoje, passando das pernas para os
astros, perco-me na mesma vã indagação. Pra que tantos astros?
Há qualquer coisa de brutal, um espécie de imposição, no
fato de uma coisa existir. O conforto que a inteligência sente, quando
investiga o nexo das relações, das propriedades das coisas, desaparece
completamente, transforma-se em angústia, quando considera a coisa pelo lado
misterioso, casual, enigmático e gratuito de sua existência. Nenhuma existência
se explica; nenhuma se justifica.
Aldebarã, uma vez que existe, tem distância, velocidade,
composição química, espectro e temperatura. Tudo isso junto, combinado, tem
para mim a cintilante aparência de um rubi celeste. Tudo isso a estrela é, uma
vez que existe. Mas por que existe? Por que tantas penas na terra e tantas
estrelas no céu? Se o existir de uma só já é demais para a minha razão, que
dizer dessa abundância, desse prodigioso desperdício?
“O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe
pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos
homens.” Será então pilhéria a minha apólice de acionista do universo com
trinta mil estrelas invisíveis. Estão altas demais. Indiferentes. Será vaidade
nossa qualquer pretensão às cruzes e aos ursos siderais. São inacessíveis.
Alheios. E eu aqui, verme colado a um grão, serei um microscópico monstro de
acaso, sem nenhuma ingerência na fluida e esbranquiçada pátria de que há pouco
me ufanava.
Fico a olhar Sírius. E cá de baixo, deste chão que me cola,
apesar de minhas misérias, (...) eu lanço um repto ao claro globo azul que me
fita lá do alto, lá do seu abismo com cinquenta anos-luz de profundidade.
Ó Sol, ó diáfana matéria, ó imensidade perdida dentro da
imensidade, aqui onde me vês eu sou um Homem, Verme consciente, roseau pensant. Qual é o maior, Sírius
ou Pascal? Qual dos dois vale mais, o sol ou o melancólico pensador?
Ó astro, Parsival perdido no céu, tu ignoras teu nome.
Vagueias, ó inocente, ó ingênuo absoluto, com teus gases excessivos e um pouco
ridículos. Perambulas como um cego, passas como um surdo, vagueias como um
desmemoriado de olhar vazio; e vê bem, considera que até para te humilhar é
ainda do homem que tiro as imagens. Na verdade és menos do que um cego, do que
um surdo, do que um desmemoriado. A tábua de minha mesa é mais rica do que teu
globo de átomos simplificados. De que vale o tamanho? Que nobreza tem a
distância? Tu estás acorrentado às equações, mais do que por metáfora lá estão
as estrelas de Andrômeda, a acorrentada do céu. Tu és Sírius, Alpha Canis
Majoris. Tens ascensão reta e declinação; e nós, nós os vermes, servimo-nos de
teu esplendor, cativando-o, domesticando-o e inscrevendo-o no Nautical almanac. Servo colossal, não
passas de servo. Eu sou um verme, mas tenho consciência de sê-lo. Sou
miserável, e o sei. Sou ridículo, e rio-me. Sou culpado, e choro.
Ai de nós! A raça de Pascal anda traída. Muitos andam por
aí, ó astro, a dizer que também somos acorrentados, que também somos apenas um
aglomerado de átomos que durante um certo tempo se demoram em nossos limites,
na esquina de um cotovelo, no vértice de um nariz, nas fugitivas pontas dos
cabelos. Dizem também que somos ocos, que vivemos de casca que a sociedade nos
empresta, ou das eructações que nos vêm das experiências mal digeridas. Mas não
te iludas com esses detratores, ó astro. A insensatez dessa gente, por
derrisão, é a contraprova de nossa dignidade. Nós temos um imenso privilégio,
que é o avesso de nosso manto real; nós temos a glória do erro.
Mas eu não vou discutir contigo, estrela; não vou
argumentar. Basta que me apresente: eis aqui um homem. A luz que me chega à
retina não encontra um ser passivo e inerte, como uma placa recoberta de
bromureto, que recebe a imagem, que a revela no banho dos humores, que a fixa
no hipossulfito da memória, e em função desse impacto dos fótons age, fala,
dança e chora. Não. Pensar não é simplesmente receber. É algo mais ativo, que vai
ao encontro do objeto. Quando a luz do astro me bate à porta dos sentidos, há
em mim alguma coisa que se ergue de um trono, que recebe o mensageiro, que
examina a mensagem, apossando-se dela, transformando-a, sutilizando-a – e que
diz ao coruscante vassalo do céu: “Tu és Sírius, Alpha Canis Majoris”.
Não acho absurdo pensar que todo esse céu seja espetáculo
para nossos olhos. Tudo é nosso. O apóstolo Paulo, antes de Pascal, exprimiu de
outro modo o paradoxo de nossa miséria e de nossa grandeza. “Somos como pobres,
e tudo possuímos”. Omnia possidentes.
Bem sei que o apóstolo se coloca em outro plano; mas por que não poderei eu
trazer sua palavra para o domínio de nossa realeza natural?
Tudo é nosso. Agora, com visão mais ampla, não faço questão
de lotear o céu para destacar das outras as trinta mil estrelas que me foram
adjudicadas. Tudo é de todos e de cada um. Socializemos as constelações.
O céu é um imenso jardim municipal. As estrelas são rosas
que os bons munícipes não devem arrancar, e que têm o público mister de adornar
os sonhos simples dos namorados pobres. Que me importam os anos-luz? Que me
importam as cifras que tentam trazer o pânico para as nossas cogitações, como
se o número tivesse força de rachar ao meio o universo? Tudo é nosso. O céu
baixou à terra; as estrelas são luminárias de nossa mansão. Brilhai, brilhai,
Sírius, Canopus, Archernar, que eu cá embaixo passeio vagarosamente por entre
as aleias do jardim luminoso.
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