sexta-feira, abril 20, 2012

Loucura

Autor: Gustavo Corção
Obra: "Na mesma língua em que chorou Camões", in O Desconcerto do Mundo

Há uma divina loucura, que vem do alto, que libera, que eleva o homem acima dos níveis em que estão instaladas as coisas rotineiras, as verdades superficiais e elementares, uma loucura que é feita de asas e de horizontes insuspeitados, que se chama inspiração, que dilata a alma, que dita aos homens os segredos de Deus; e há uma outra loucura, que prende à carne o espírito, que reduz os horizontes às medidas da obsessão e que, segundo o genial paradoxo de Chesterton, consiste na perda de tudo, exceto da razão. Materialmente semelhantes, pela quebra de padrões usuais, pela extravagância dos resultados, pela fuga ao nível dos valores consagrados, os dois casos estão realmente nos pólos opostos da vida da inteligência.

Ou melhor: opõem-se como a vida se opõe à morte. Poderíamos ainda lembrar que há uma outra espécie de loucura "from above" e de delírio verdadeiramente divino: é aquela que se traduziu numa descida de Deus, e que em nós atua como força de sobrenatural subida, e como apetite de cruz. Por causa dela estamos sempre em tensão neste mundo. Não há fórmula de repouso ou de cura, não há receita de relaxing que possa resolver as trágicas equações de nossa vida. Em regra geral, no comum dos casos, que a filosofia da mediocridade chama de normal, vivem os homens o cuidadoso equilíbrio ao rés-do-chão. Têm medo das energias internas que pedem superação, e agarram-se aos preconceitos e às fórmulas da pacata existência. E é por isso, precisamente por isso, por causa da parcimônia espiritual, por causa do medo da divina loucura, por apego ao equilíbrio da carne, que ficam doidos da doidice que pede choque elétrico e camisa-de-força. A loucura do alto é o melhor antídoto para a sandice inferior.

Se o mundo tivesse mais santos, se se entregasse com mais generosidade aos vôos líricos dos poetas, se cultivasse com mais amor o delírio que está num quinteto de Mozart ou num poema de Camões, haveria mais vagas nas casas de repouso. Nós andamos na vida com dois doidos por dentro, um a nos ditar obsessões, outro a nos propor um vôo. Voemos. Libertemos o doido que nos libertará. Cantemos com os cantores, e sobretudo aceitemos o divino convite que nos torna divinos.

Um comentário:

  1. Lindo isso. Letícia, as atualizações de teu blogue fazem falta. Saludos de Foz!

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