Autor: Gustavo Corção
Obra: As descontinuidades da Criação
Creio que não basta raciocinar com a
"desprezível pequenez" de nosso universo U1 (1) para eventos cuja
probabilidade é chamada de escala super-cósmica. Há na afirmação de que todas
as leis da Física são estatísticas um curioso paradoxo: ela peca justamente por
onde pecava a filosofia das ciências "belle époque" newtoniana, a
saber, pela falta de discernimento entre os dois tipos e graus de abstração.
Não há ciência senão do universo; o empirismo
nominalista (2) que levasse o furor particularizante até o projeto de estudar
uma por uma todas as pedras de um rio, como sugere São Tomás, que às vezes
sabia divertir com os erros dos filósofos, levaria estes últimos diretamente
aos hospícios. O mundo moderno não está longe desse resultado, com a vantagem
de dispensar os hospícios. Seja como for, não há ciência sem alguma abstração;
a Física abstrai a particularidade, a singularidade concreta, mas não deixa
para trás a materialidade; a Matemática, porém, embora lindando com categorias
que só se realizam extra mentalmente no mundo corpóreo, abstrai a materialidade,
e lida com puras formas que são entes de razão. E é dessa singular e oblíqua
abstração que resulta o equívoco que atribui às matemáticas um puro valor de
símbolos ou de formas a priori criadas pelo espírito humano.
Na verdade, pode-se dizer que a
matemática tem uma composição de duas faces: na primeira está a ciência do
"ens quantum", nascida do real por uma abstração que abandona a
materialidade mas traz para sua noções a categoria que só o mundo material se
realiza; na segunda face a matemática será efetivamente uma linguagem. Os
próprios entes matemáticos que mais se parecem com os entes reais de onde foram
tirados, um círculo, por exemplo, guarda na matemática um vazio, uma
disponibilidade de significação simbólica que o torna apto a exprimir fenômenos
que nada têm de circular. Tomemos por exemplo um vibrador animado de um
movimento periódico simples. O físico matemático estabelece entre os estados do
vibrador e o movimento angular de um raio de círculo uma correspondência que o
autoriza a escrever a lei do dito movimento vibratório sob esta forma: y=A sen
wt.
A função senoidal foi encontrada na
geometria em dois lugares: nas relações dos lados de um triângulo retângulo, e
no movimento uniforme de um raio projetado sobre o diâmetro de um círculo. Ora,
não há nada de triangular nem circular no vibrador, por onde se vê que os entes
matemáticos se esvaziam de suas primitivas significações e ganham valor de
linguagem.
Seja como for, o que é preciso é acentuar
é a diferença de tipo e grau de abstração na Física e na Matemática. De acordo
com a tradição tomista, Jacques Maritain (3) descreve os graus de abstração,
primeiro na Física, segundo na Matemática, frisando bem a diferença entre a
linha da Física e a da Metafísica (3o. grau de abstração) que se orienta para o
real, e a linha Matemática que se orienta para os entes de razão.
Atrás já demos o singelo exemplo do
quadrado físico, onde a relação diagonal/lado só pode ser expressa por um
número racional do tipo m/n, e o quadrado matemático onde esta relação não
somente é exata, isenta de erro, como também é fonte de uma classe de número
real, o irracional √2, √3, etc.
A matemática empresta seus símbolos a
todas as ciências da natureza, mas tem com a física um comércio especial que
chega a construir uma espécie de ciência intermediária: a Física-matemática. O
grande e permanente problema epistemológico é o da fidelidade ao objeto formal.
Cada ciência tem o objeto formal que lhe é dado pelo grau e tipo de abstração.
O equívoco epistemológico da Física
clássica, contra o qual reagiram os gênios Maxwell, Einstein e Planck, era o
de considerar o universo físico como quem considera os entes matemáticos. As
noções de sólido indeformável, de simultaneidade em pontos diferentes do
espaço, e de referencial absoluto dos movimentos com necessidade de um éter
imóvel, foram vigorosamente sacudidas pela Física moderna. Em termos de
oscilação filosófica entre os dois ramos no nominalismo pode-se dizer que a
Física clássica era predominantemente racionalista, e a Física moderna é
predominantemente empirista.
E agora chegamos ao curioso paradoxo
atrás assinalado: os físicos modernos, na aplicação do método estatístico,
entregam-se a uma intemperança aritmética ou se tornam matemáticos furiosamente
abstratos, quando não marcam limites físicos para as grandes improbabilidades.
Não basta dizer que 10 ^ -1.000 000 é probabilidade desprezível, e praticamente
impossível: é preciso assinalar a ilegitimidade do método que se julga livre
e com plenos direitos de introduzir no mundo físico uma progressão de
transfinitos. Não basta dizer como Borel, que tal probabilidade "não
cabe" no universo U1; é preciso dizer que o método probabilístico levado a
sério em suas últimas consequências, não cabe em universo físico nenhum.
Dizer que uma chaleira fervendo no fogão
tem uma probabilidade super-cósmica de se congelar bruscamente e de subir
verticalmente, será apenas uma maneira complicada e pedante de dizer que uma
chaleira fervendo no fogão, pela natureza das coisas na realidade
macroscópica, jamais poderá se atirar para o teto congelada, embora a divertida
extrapolação das fórmulas da probabilidade matemática, aplicadas à constituição
molecular dos corpos, afirme a existência de um possibilidade, mesmo se remota.
A devolução da Física ao seu campo
próprio, realizada por Einstein e seus colaboradores, trouxe a necessidade
epistemológica (e não apenas prática) de limitar a velocidade da luz. Ora, a
intemperança aritmética que os antigos faziam para cima, é agora retomada, para
baixo, pelos físicos probabilistas que não admitem uma probabilidade física
mínima em cada caso.
__________________
(1) Leia-se Emile Borel
(2) O nominalismo é a doutrina que não
admite a existência do universal nem no mundo das coisas, nem no pensamento.
(Josef Santeler, no Verbete: Nominalismo, Dicionário de Filosofia, Editora
Herder, SP, 1969, pág. 296)
(3) Jacques Maritain "La Philosophie de la Nature", Tequi.
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